Desde que comecei a brincar de escrever, certamente este foi o texto mais difícil que já fiz.
A rotina da minha vó era conhecida: levantar, tomar café e ficar sentada no sofá ouvindo os sons, conversando com alguém (ou com ela mesma), ouvindo a vida passar devagar. Sim, ouvindo. Ela não podia ver a vida passar, pelo menos não no sentido literal. Um erro médico há 14 anos fez com que ela perdesse 100% da visão e parasse por ali com qualquer trabalho manual.
Desenvolveu mais os outros sentidos e claramente ouvia melhor e a qualquer ruído ou sussurro. Falava bem - apesar de por vezes misturar o nome dos netos.
Ela não quis sair, caminhar, tentar viver de um jeito diferente. Agora a vida era diferente, sem um dos sentidos. O principal deles, arrisco dizer. E justamente por isso, a rotina passou a ser a mesma. Mas não estou aqui me lamuriando por ela. Até porque nem ela fazia isso. Na-na-nin-na-não! Sempre que perguntada como estava a resposta era a mesma "tudo bem, graças a Deus". Sempre tudo bem. Sempre graças a Deus. Estava conformada, não tinha o que fazer.
Na minha visita ao Brasil em maio fui visitar minha vó e em determinado momento ficamos eu e ela sozinhos, conversando sobre várias coisas da vida, e o que ela me falou fez o mundo todo ao meu redor parar por um segundo. O vazio tomou conta do peito, parece que meu coração se reduziu ao tamanho de uma caixa de fósforo. Minha vó, aquela senhora vivida com seus cabelos brancos e braços beliscados pelo tédio, me disse "olha só Rafael, eu que fazia tanta coisa, agora tô aqui neste sofá, daqui pro banheiro e pra cama". Olhei profundamente dentro daqueles olhos azuis lindos e invejáveis de onde, naquele momento, escorreram dois gritos de clemência em forma de lágrimas.
Aqueles olhos. Aqueles que nunca mais verei.
Deus optou por dar fim aos dias entediantes e, pra ela, sem sentido e atender o pedido que às vezes era dito por ela: queria "parar de dar trabalho e parar de sofrer". Ontem o pedido dela foi atendido, contrariando a vontade de qualquer familiar e ao mesmo tempo confortando a ela mesma, que já estava conformada.
Vai em paz, vó!
* Uma homenagem a esta mulher guerreira que foi mãe e pai pra minha mãe e tias e que tornou elas e nós netos quem somos hoje.