"O trabalho liberta". Essa era a promessa que todos os 1.3 milhão de prisioneiros de Auschwitz liam ao entrar pelos portões. Se soubessem alemão, claro, porque está escrito "arbeit macht frei", com o "B" da primeira palavra de cabeça pra baixo. Um detalhe sutil que se tornou uma mensagem poderosa dos prisioneiros que instalaram a placa.
Você pode ver os stories que fiz nesta viagem nos stories no meu Instagram.
Os prisioneiros, afinal, eram forçados a trabalhar. Se você se identificar com isso, ou pensar que todo prisioneiro tem mesmo que trabalhar, talvez não saiba que no caso de Auschwitz, o único crime que essas pessoas cometeram foi serem judeus, poloneses, ciganos romenos, prisioneiros de guerra soviéticos, homossexuais ou testemunhas de Jeová. O trabalho forçado que eles faziam era em turnos de 11 horas. Podia ser fazendo tubulações de água, um novo campo de concentração ou linhas de trem.
Fui até Auschwitz de trem, como muitos dos prisioneiros também iam. Pra minha sorte fui em 2019, então não desci em Auschwitz I ou II, mas sim na estação mais perto, de Oświęcim. Lá aprendi com os prisioneiros de quase 80 anos atrás que sou uma pessoa privilegiada. Dormi uma noite em Katowice então de Londres até Auschwitz deu 24 horas, comendo o que e onde queria e tomando banho antes de sair e ao chegar no hostel. Também diferente daqueles dias que em às vezes até 11 dias de viagem a única parada era pra esvaziar a lata de excremento compartilhada por um vagão todo de trem. Annie Frank "teve sorte" que o trem dela chegou em Auschwitz em três dias.
As malas com os nomes dos prisioneiros dão um senso de realidade ainda maior disso tudo. Nomes e endereços, tudo organizado, tudo parte da ilusão pra eles que iriam ter acesso aos pertences novamente depois. Descarregavam as malas e de início a seleção acontecia: pra um lado, os aptos a trabalhar; pro outro o que na visão dos nazistas eram inaptos pra qualquer outra coisa a não ser ir pra câmara de gás. A promessa era que depois de um banho, eles ganhariam comida. Depois de se despir muitos até corriam para a próxima sala pra terminar com aquilo e ganhar a tal comida quente logo. Mal sabiam que aquela sala seria o fim da viagem sofrida de dias. O fim de tudo. Eu, ao entrar na câmara de gás senti um saco em cada um dos ombros. Um peso que meu corpo inteiro sentiu e reagiu, me senti envergonhado, me senti como se não tivesse o direito de estar ali, como se estivesse chegando muito tarde pra fazer alguma coisa. O olhar foi longe. A cada segundo um horror diferente. Num segundo a mente imagina as pessoas espremidas, oito por metro quadrado. No outro os gritos de desespero, o sufocamento sem entender por que, como se algum motivo fosse motivo. Em 20 minutos, o silêncio.
Terminaram ali várias vidas que nem sequer haviam começado direito.
No "auge", em todas as câmaras de Auschwitz foram quatro mil mortos por dia. Quatro mil vidas. Quatro mil sonhos. Quatro mil histórias. No total, mais de um milhão e cem mil mortes. Fica difícil entender e imaginar isso tudo né? Imagine então quatro aviões caindo todos os dias. Por três anos. Em todo o holocausto, mais de seis milhões de mortos.
Nada justifica os crimes. Nada conquista o perdão. Simpatia, um pedido de desculpas e vergonha pelo ser "humano".
A única saída era pela chaminé dos crematórios. Lá os corpos eram incinerados pelos próprios prisioneiros. O Sonderkommando era responsável pela árdua tarefa de ver seus próprios colegas, por vezes até conhecidos, em direção ao final das vidas. Mesmo quem sabia que aquele era o destino final não tinha escapatória. Reagir poderia resultar em tortura, tiro ou choque elétrico ao tentar escapar. Duas cercas elétricas forçavam os prisioneiros a nem tentar, cada uma carregada com 400v.
As fotos expostas de quando as vítimas chegam no campo de concentração mostram uma expressão calma no rosto, iludidas por promessas, não sabendo ao certo onde estavam se metendo. Aonde tinham metido elas. Obviamente as fotos não mostram as pessoas que apanhavam, imploravam por clemência ou eram executadas com um tiro. Mereciam, diziam os nazistas. Elas não estavam mantendo a ordem e seguindo as regras. Imagine só que absurdo ter perdido um botão da roupa maltrapilha ou roubado casca de batata pra comer. O bloco onde os julgamentos aconteciam registrou 100% de aprovação pro lado dos nazistas. Ninguém que passou por lá foi perdoado.
No bloco 10 foram conduzidos vários experimentos em mulheres por médicos nazistas. Desde testes de como algum medicamento reagia à pele até injeções no coração para dissecar o corpo imediatamente.
Perto dali foram reconstruídas as forcas usadas em alguns casos (geralmente em quem planejava escapar ou planejava alguma rebelião), e logo na frente era onde a plateia assistia. A plateia não tinha escolha, afinal aquele era o aviso do que podia acontecer com eles também caso a ordem não fosse mantida ou as regras respeitadas. Na maioria das vezes o corpo era exposto por alguns dias ao lado do portão de entrada. Isso, daquele portão prometendo o que todo mundo sabia que era mentira.
Por si só as paredes não refletem o que acontecia ali na frente delas. Ver aparelhos de barbear, óculos, fotos e até cabelo das vítimas é o que dá ainda mais peso pro lugar. Tudo era retirado antes de entrarem na câmara de gás, inclusive o cabelo. Muito tecido e muito travesseiro foram feitos com os cabelos destes judeus. Mas olhar pra muitos fios e tranças faz refletir que aquelas pessoas não teriam sofrido não fosse a simples busca por poder, ordem e a dita pureza de poucos.
As escassas refeições eram consumidas com pressa, de tanta fome, na mesma vasilha usada pra se lavar e que também era usada como banheiro. Naquelas salas as "camas" tinham três andares e eram divididas por até cinco pessoas por andar. O topo era a parte mais fria, enquanto embaixo corria o risco de receber pingos de diarreia ou hemorragia dos vizinhos de cima, efeitos da fome extrema.
No fim do dia os grupos guiados terminam e fica aberto para visitação gratuita. Pouca gente visita neste horário, o que deixa o ar ainda mais frio. As árvores sem folhas se unem ao silêncio dos prédios de cara feia e juntos gritam por socorro. Parece que os prédios sentem vergonha de ter tratado seus habitantes com tanto desprezo. Parece que eles também pedem desculpa.
Quando a gente é criança e tem um irmão que apanha por ter feito alguma coisa errada, é normal aprender a não fazer o mesmo. Olhar já é suficiente. Se ele aprontou e apanhou por tentar colocar o dedo na tomada, é óbvio que se tentar colocar o dedo na tomada meus pais vão me bater também. Os erros não precisam ser nossos pra ter algum efeito de ensinamento. Eles não precisam guiar o hoje, até porque já traçaram o caminho pro hoje. E por isso a visita a Auschwitz é tão interessante.
Na Alemanha o uso de sinais, símbolos e saudações nazistas é ilegal, e em Auschwitz é proibido desde falar a favor de fascismo e totalitarismo até negar crimes nazistas. É irônico que os nazistas se achavam a raça superior são hoje considerados da ideologia mais pobre e inferior. As marcas dos crimes imperdoáveis continuam vivas. Elas lembram o período de repressão e autoritarismo que disfarçava o ódio através de palavras como ordem e pureza. E estas marcas jamais devem se apagar pra que os erros do passado não se repitam.
As lições não se limitam a não permitirmos um sistema autoritário. Pra mim foi desde o que o poder pode fazer com uma pessoa, um dito líder; até onde o puro preconceito pode chegar, seja por religião ou opção sexual; passado por quais as consequências da alienação, já que ninguém sabia o que estava acontecendo em Auschwitz, quem falava sobre o assunto era tido como louco; e ainda como vivo numa vida de privilégios, seja quanto à moradia, comida e principalmente liberdade.
Apesar de não ter tido uma ligação direta com o holocausto, não preciso passar por isso pra aprender. Não preciso esperar que eu ou algum membro da minha família seja torturado, escravizado ou assassinado pra aprender que isso foi e sempre será ruim. Nada justifica os crimes, nada conquista o perdão.
Saí de lá mastigando as histórias e tudo o que vi e senti. Saí refletindo do que o ser humano é capaz mas agradecendo pela minha realidade, bela liberdade que jamais quero perdê-la, e por existir um lugar que mesmo sem falar nada consegue passar uma grande lição.
Assista como foi a minha viagem no Instagram stories.
COMO IR
- Auschwitz é um dos tantos campos de concentração e extermínio espalhados pela Polônia e Alemanha.
- São dois locais: Auschwitz I, onde tem muita coisa conservada; e Auschwitz II-Birkenau, com alojamentos e ruínas das câmaras de gás.
- Os dois aeroportos mais próximos são de Cracóvia e Katowice.
- Sei que tem passeios saindo de Cracóvia, mas eu fiquei hospedado em Katowice e peguei um trem de lá até Oświęcim (6 zł) e caminhei 20 minutos até Auschwitz I. Muito fácil. Atente-se aos horários de trens (me guiei pelo Google Maps mesmo).
- O acesso ao campo de concentração é grátis em vários horários. Tem placas com explicações em inglês (não possui áudio-guia).
- Nos demais horários é permitida apenas a visita guiada por o que eles chamam de educador (e recomendo muito!). O custo é de 60 zł (60 Zloty - aprox. R$ 60). Educadores falam inglês, espanhol, polonês, alemão e italiano.
- A visita com educador nos dois campos dura cerca de 3h30. Depois você pode pegar um ingresso gratuito e entrar novamente se desejar.
- Reserve sua visita no site de Auschwitz aqui. Neste site também tem todas as informações sobre a visita.
- O transporte entre Auschwitz I e II é grátis.
Como fez para ir de Londres até Katowice? Avião?
Sim.
Para mim, professora de história, senti nos ossos e no coração a sua emoção em forma de palavras. Não tenho coragem de visitar esse lugar mas aos seus olhos respirei a história,o sofrimento e a certeza de que aquele lugar nos chama a responsabilidade de sermos humanos o suficiente para que nada disso aconteça novamente. Parabéns pela narrativa. Me emocionou por completo.
Oi Eudesia!
Fico feliz que tenha gostado da forma como transmiti a experiência.
Obrigado pelo comentário. Abraço!
Parabéns. Parabéns. Parabens. !!!!
Só ter ido já faz de vc um cara especial. Ter relatado tão bem faz de nós especiais em saber mais sobre esta atrocidade. E tem gente que usa a palavra Holocausto em comparações. Nada se compara.
Continue sensível e humano.
Valeu Ezequiel!
Fico feliz em saber que tenha curtido o post. Realmente, tem gente que precisa aprender a medir melhor o que fala né? hehehe
Abração!
Oi Rafa! Me emocionei com o seu relato. Não sou historiadora, sou uma curiosa estudante do passado. Sinto tristeza ao ver traços de um passado cruel no presente. Que bom que ainda existam pessoas que, olham para o passado para aprender e não repetir.
Obrigado Mônica!
Fico feliz que tenha gostado do post.
Abração!
Oi Rafa. Eu visitei a casa de Anne Frank e senti tanta dor, tristeza e sofrimento que não sei explicar tão bem como você. Realmente é inacreditável tamanha crueldade. Obrigada por compartilhar tuas experiências. Estou contigo em cada post, stories e relatos. Abraços pra ti guri querido.
Uau! Eu imagino! Esta nunca fui ainda, mas está nos planos. Obrigado por me acompanhar e pelo feedback dos posts.
Abração.
Eu acompanhei toda a sua viagem mas ler seu relato me fez cair em prantos. Muita tristeza e também muito medo por saber que a estupidez humana continua a mesma que sempre foi.
Que querida! Obrigado por me acompanhar.
Que doido isso né, relações com tempos atuais.